Friday, May 23, 2008

AS CHAMINÉS DE MELVILLE

Ilustração Nina Govedarica

“... for it is resolved, between me and my chimney, that I and my chimney will never surrender”.
Herman Melville, I and my Chimney (Setembro 1855).

Os pequenos demónios têm o hábito de se introduzir no ouvido quando estou mesmo a deixar cair as pálpebras de cansaço. Não que tenha ilusões de que vá conseguir dormir. Não quero gritar, por isso cerro os maxilares, mas cerro-os com tanta força que se deve ouvir nas outras camas, apesar do barulho da lona a bater furiosamente contra os varais.
A luz é amarelada e a lona que em tempos foi branca está salpicada de manchas de ferrugem onde as ilhoses lhe tocaram, ao ficarem guardadas no porão, e de sangue que parece ferrugem, onde lhe roçaram mãos e ligaduras.

De vez em quando sai-me um som do fundo da garganta, não há nada a fazer para o impedir, quando as pequenas lâminas afiadas rebentam de súbito e cortam o osso em todas as direcções. Ou o corpo encolhe-se. Ou a cabeça abana como a cabeça dum cão picado. Como, por exemplo, quando o maldito bicho entra a matar pelo ouvido adentro.
Na cama ao lado, o Fataça percebe qual é o meu problema e olha-me com tristeza. O Fataça tem uma teoria e custa-lhe que não a leve a sério e seja tão estúpido que prefira sofrer ainda mais do que aquilo que o meu corpo me obriga a sofrer.
“Contou-me um marinheiro russo, um tipo com cara de bolo-rei e olhos em bico. Lá na terra dele, dizia-me, têm mosquitos grandes como salmões. Sim, como salmões. Era o que ele dizia, e também me ensinou como ficar em paz com os mosquitos. Uma pessoa tem que manter a calma, deita-se e faz de conta que o mosquito é como um cão ou um gato, ou outro animal doméstico que está ali ao lado de vigília. Sossegado.”
A teoria dele irritava-me mais do que me entretinha e não me contive que não o interrompesse.
“Ó Fataça! Parado estou eu aqui, sem me conseguir sequer levantar para ir mijar que não me caiam todos os talhantes do inferno em cima dos ossos, e eles não me largam o pavilhão!”
Ele não percebeu esta do pavilhão, e eu que queria ser mesmo mau não lha expliquei.
“Vá por mim”, continuava ele pacientemente, alheio à minha vingativa injustiça, “por certo o meu tenente não quer ficar como aquele ali.” E apontou para um tipo que passava noite e dia sentado, balançando-se e gemendo baixinho, com um cobertor cobrindo a cabeça. Nunca tinha pensado que o drama dele fossem mosquitos e calculei que o Fataça estivesse a inventar aquela para me impressionar. “Cada vez que aquele se vira aos mosquitos, eles não o largam. Até grita com eles! Uma desgraça.”
“Pensava que gritasse de pânico. A desgraça dele foi um estouro que lhe rebentou os ouvidos, e não os mosquitos. Fataça, por amor de Deus! Como quer que acredite nessa?”

Passa um sargento devagar, frente à abertura da tenda, mãos atrás das costas e ombros atirados para trás, a pala sobre os olhos e o francalete pelas beiças, a imitar um oficial inglês de jornal ilustrado. Vê-se o vento a bater-lhe nas calças brancas de pano farto e as folhas das árvores a marcar-lhe o ritmo.
Lá ao fundo, ou bombarda ou trovoada, já nem sei qual é qual, a envolver-nos. Aqui, o vento. As árvores abanam com raiva, as lonas batem tímbales com fúria, e não dão mostras de sossegar. Já vai assim, sem chover, no terceiro dia de ameaça de temporal.
Está calor e cada vez há mais mosquitos. Porque é que o vento não os leva para longe? Ocorre-me que o vento os tenha trazido de longe. Para este sítio de refúgio, onde a Natureza rufa mais do que a guerra. Estamos cercados de chuva e trovoada por muitos quilómetros em redor, um inimigo medonho, cinzento escuro e pesado, que nos aperta. Só aqui o céu está azul. É a ilha dos mosquitos.

Lá em baixo, junto à água, deve estar mais abrigado, mas não quero que me mandem para lá. Voltar para trás nunca me pareceu boa coisa e eu já estou bastante atrás. O médico disse-me que assim que chover me ponho a andar. “Na sua idade não é muito normal”, como é que ele pode achar que tal coisa pode ser normal seja em que idade fôr, “isso vai, se não for a bem, vai a mal.” E deu-me um minúsculo frasco castanho com láudano, que me ajuda tanto como o vento ou os mosquitos de cada vez que as navalhas muito afiadas se decidem a cortar-me os ossos dos pés em lascas muito finas, que se separam numa multidão de pedaços de vidro. Daqui para a frente já não há justiça nem injustiça, não há vento nem mosquitos.
Por falar nisso, um deles passa devagar mesmo à frente dos meus olhos. Já não lhes ligo. Eles também não. Disfarço, para que o Fataça não perceba que estou a dar razão à sua teoria. Mosquitos grandes como salmões! Russos com cara de bolo-rei! Como dar-lhe razão em tamanhos disparates, não me dizem? Mas um problema já está resolvido. Agora só falta andar.
As lonas revoltam-se com renovada força e a da minha frente solta-se num canto, que bate como metralha. Encolho-me todo. Os pedaços de vidro moído explodem em outras tantas ampolas de ácido. Tento não pôr os pés em cima de nada. O sargento passa por detrás das tendas, soltando berros que o vento se encarrega de apagar. Ponho os pés no chão.

Lá ao fundo, para lá da lona que se levanta e bate furiosa, por detrás das copas das árvores baixas que se espalham monotonamente pelos trezentos graus de terra firme que nos rodeiam, recortam-se contra o horizonte escuro as silhuetas solenes e divertidas das chaminés de Melville.

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