Wednesday, May 21, 2008

O PASTEL

Pastéis e fotografia, J.G.

Lisboa.

“Sabe o que é um pastel de bacalhau? Um pastel de bacalhau é um frito, com a forma duma ameixa, de cor ocre com manchas escuras e superfície irregular como as costas dum animal abespinhado. O interior amarelo com pintinhas verdes tanto pode ser uma massa seca, com uma ocasional espinha de grandes dimensões, como pode ser macia e ter mesmo sabor a bacalhau. Por isso é melhor conhecer o sítio onde se vai comer o pastel. Os portugueses não vendem os pastéis de bacalhau nas padarias, como na sua terra se faz com o burek, vendem-nos nos sítios em que também se bebe. Por isso é que você não vê pessoas a andarem na rua comendo pastéis de bacalhau, nem a entrarem num café com um saco de papel com pastéis de bacalhau e pedirem uma taça de vinho branco.”

O meu amigo olha-me com a atenção dividida entre as minhas palavras e os pastéis que vêm a caminho.
Perfilado em frente a um mar encapelado de azulejos azuis e amarelos, o empregado que trouxera os pastéis, mexendo-se devagar mas com eficácia, olha para além de nós com uma atenção silenciosa.
O meu amigo repara com estranheza nos bancos. São assentos de madeira altos de tampo quadrado e estão montados em volta da barra para pôr os pés, não podendo assim mexer-se senão de lado e apenas um pouco para trás e para diante.

“Nunca vi uns bancos assim”, diz-me ele, “nem penso que alguém queira agarrar num banco tão pesado e fugir com ele pela porta fora.”
Explico-lhe que antigamente, por estes lados, tinham o curioso hábito, quando bebiam um copo a mais, de mandar com os bancos à cabeça uns dos outros.
Olha-me com incredulidade. “Em tempos”, digo-lhe eu para arrumar de vez as suas dúvidas, “sobretudo junto ao rio e nos bairros que sobem até ao Castelo, era hábito baptizarem os estrangeiros desse modo”.
Ele entrega-se ao pastel, para amenizar o horror.

Estamos nisto, quando estala uma gritaria lá fora. Ao fundo, a rua está cheia de gente. Os gritos são de socorro. Com tanta gente na rua, porque não socorrem o desgraçado?
Pedimos vinho tinto e ele mira já, guloso, o último pastel que está na montra.

Os gritos aproximam-se, e imagino que tenham palavras escondidas, mas não se consegue perceber quais. Vamos até à porta. Um homem grande com uma grande cabeleira amarrada em tufo na nuca como um polvo, pega pela manga de outro homem, que se agarra ao chão e se faz de peso-morto, enquanto grita e esperneia como uma criança.
O polvo está a gritar para um telemóvel, com uma voz gemida “onde é que vocês estão? Agarrei o Moçambique! Onde é que vocês estão?”
Mentira, não agarrou nada, o Moçambique, que se vê logo ser malandro como um alho, escapa-se e agarra num grande cubo de basalto. Mas a ameaça que leva na mão tarda em atingir uma altura digna.
O outro continua a ser o único dos dois a manter o estado de histeria, “Onde é que vocês estão?”

Um carro da polícia vem da rua de cima e tapa a saída ao Moçambique, que abre os braços como que para receber um amigo ausente há muito, fazendo ao mesmo tempo desaparecer a pedra que se diria nunca ter estado nas suas mãos, sequer arrumada estrategicamente a um canto do passeio, tal como outros cubos de basalto espalhados pelo centro da cidade. O Moçambique aproxima-se assim para o emocionante encontro, tira o blusão, finge despir a camisa em gestos trapalhões e entrega-se de braços e pernas abertas contra o carro, como num filme americano.
Viro-me para o sítio onde deveria estar o homem com a cabeça de polvo, mas este entretanto desapareceu como uma brisa.

Voltamos para dentro. Já não há pastel de bacalhau na montra. Um tipo de boné, ao fundo do balcão, está a comê-lo. Então, o meu companheiro agarra no assento do banco e sacode-o. Este abana um pouco para um lado, um pouco para outro, pouco firme.

C


No comments: